Pesquisador aponta as transformações nas TV públicas no Brasil e na Argentina em nova publicação
O que vemos e a quem vemos (e também a quem não vemos) cotidianamente na televisão contribui para a imagem que criamos do país e do seu povo. A formação das redes de emissoras e do modelo de fazer televisão no Brasil, na comparação com a experiência argentina e tendo como elementos de contexto a TV pública nos dois países e o efeito da hegemonia cultural dos EUA em nosso país, é o foco do livro Mídia, Colonialismo e Imperialismo Cultural, do professor Hamilton Richard Alexandrino Ferreira dos Santos (POPTECS/UFSB). A obra apresenta o ponto de vista resultante de mais de duas décadas de pesquisas sobre televisão e comunicação e integra a coleção Pensamento Negro Contemporâneo (Editora Telha, 2023).
A pesquisa trata de comparar os casos das televisões públicas brasileira e argentina, considerando os históricos recentes na política e os impactos dos acontecimentos das décadas passadas desde a chegada do televisor e das emissoras aos dois países. O professor Richard aponta, no estudo, para os efeitos das pressões externas, notadamente as exercidas pelos Estados Unidos através do sistema midiático, e para as dinâmicas internas de cada país, que colocam em constante jogo os governos, o mercado e as escolhas efetivadas nas televisões públicas. Os potenciais de emancipação, de contra-hegemonia e de enfrentamento das injustiças históricas no campo cultural formam os nortes pelos quais o pesquisador acompanha e analisa o percurso das emissoras públicas, as legislações que as regulam e as mudanças, nem sempre positivas, que resultam das decisões em governos de diferentes posições no espectro político.
Modelo e percurso da tv brasileira
O livro tem como um dos pontos centrais a transposição do modelo estadunidense de TV para o cenário brasileiro, fato que causou efeitos estruturais no modo da televisão falar sobre o país e o seu povo. Provocado a expor sua ideia dos motivos que fazem a TV brasileira ser do jeito que é, o professor Richard Santos destaca a dominação financeira de empresas estrangeiras na definição de modelos de programação e o peso de grandes empresas nacionais que aderem aos métodos de marketing e propaganda dos grupos internacionais. Ou seja, muito mais venda que qualquer outra coisa: "No final das contas, temos uma televisão que é uma grande rede de exploração do consumo e quase nada de formação cidadã, de construção nacional e possibilidades educativas." As recentes mudanças que se percebem na estética da TV brasileira, afirma o professor, se devem muito ao esforço constante de movimentos sociais. "Temos visto mais pessoas não brancas, quase inexistentes desde a criação da televisão no Brasil até a primeira década deste século. Temos visto uma maior variedade de temáticas sociais. Isso por conta dos grupos de pressão, muito pouco por conta da transformação de quem controla os meios. Ademais, muitas vezes não conseguimos acionar a mudança pelos caminhos da justiça, da política, dos meios possíveis de legislar pela Maioria Minorizada, pois, conforme pesquisa recente, são estas pessoas sacralizadas no poder que continuam com o poder de decidir o que somos imageticamente como povo", indica Richard.
No percurso histórico elencado no estudo transformado em livro, o pesquisador vai colocar como importante elemento da configuração do panorama televisivo público regional as ditaduras militares no Brasil e na Argentina. Esses momentos das respectivas políticas nacionais geram efeitos até o presente nos dois países, analisa Richard: "Ainda hoje vimos os mesmos donos do poder, ademais de uma narrativa política reordenada pós-ditadura, mas que coaduna com os interesses de uma classe hegemônica que se beneficiou dos golpes, fez fortuna e maniqueisticamente segue no poder fazendo o jogo das marionetes. A televisão e seus derivados, chamo as redes sociais audiovisuais de derivados da técnica televisiva, com seus algoritmos que formam bolhas, servem para esse controle social, das mentalidades, do imaginário. Se é fato que ainda vivemos sob as chagas da escravidão, do colonialismo, pois temos uma independência inconclusa, com extrema dependência do capital e interesses internacionais, é tão verdade quanto que a partir da ditadura no Cone-Sul os grupos reorganizados no poder seguem sendo aqueles que amparam os interesses da classe dominante e que blindam os algozes da Maioria Minorizada".
Uma lacuna que ainda precisa ser preenchida para que a TV pública brasileira represente melhor a face real da população brasileira é a alteração da lógica de produção, nos âmbitos técnicos e estéticos, destaca o professor Richard. Para isso, é preciso que os governos estaduais e o federal mostrem vontade política de concretizar essa transformação, desta vez em prol do povo. E essa transformação tem de ser "plural, com diálogo com os mais variados campos sociais, que objetiva e/ou subjetivamente não subalternize uns e empodere outros. E que não se resuma a uma mudança estética, pluralidade apenas na frente das câmeras", lista Richard. "Precisamos de pessoas não brancas nos cargos de direção, na presidência, nos conselhos de gestão, somente assim teremos uma imagem de Brasil representado e decidindo o que será produzido, levado ao ar, mas isso requer compreensão histórico-social da realidade em que estamos inseridos. Não estou certo que temos esta disposição no ar".
Uma leitura do que passou e uma aposta no que pode vir
Em resposta a um pedido de exposição sobre o período recente da televisão pública nacional, o professor Richard destaca que os recentes governos Temer e Bolsonaro realizaram esforços de desmontagem da estrutura e venda da mesma ao capital privado. "Foram governos absolutamente desalinhados com os interesses nacional de organização social, de consolidação do Estado de bem-estar social, de aprofundamento das oportunidades democráticas. Foram governos radicalmente alinhados com os interesses do capital internacional, com a espoliação dos bens materiais e imateriais, com a desconstrução das conquistas cidadãs e com a dissolução da “comunidade imaginada” que chamamos de nação", explica o professor. Para Richard, uma televisão pública forte é ruim para governantes que não se alinham com a cidadania e com a democracia de alta intensidade: "Foi nestes dois governos que vimos o total desmonte da EBC, a entrega de sua direção para militares totalmente distantes da compreensão do papel da TV pública para a sociedade, perseguição e silenciamento de colegas jornalistas. Desconstrução dos fóruns públicos de participação e desmonte do Conselho Curador".
A troca de gestão no Governo Federal traz uma possibilidade de mudança, aponta o docente e pesquisador. É a oportunidade de apresentar a ideia de televisão pública, com criticidade construtiva e intenção de aprimorar a EBC a partir de pontos de vista internos e externos à instituição, o que Richard percebe como um momento muito positivo. Só a intenção não basta, porém: "Por outro lado, não havendo o descontingenciamento da verba federal para o financiamento da empresa pública, pouco mudará. Comunicação exige investimento, é a imagem do Brasil para o Brasil e para fora, é soft power. Outra possibilidade seria a possibilidade de tvs e celulares já virem com o app da TV Brasil e Rádios EBC, falo disso no livro, mas no âmbito do projeto Brasil 4D, interatividade, diversidade, etc.. Pode ser contrapartida por isenção fiscal. O setor recebe muita isenção e pouco retorna efetivamente para a sociedade e para as telecomunicações. A Comunicação pública ganharia muito com isso".
Outra ação importante que o professor Richard Santos indica é a retomada do Conselho Curador, destituído no governo Michel Temer e potencial ponto de inflexão no contato da sociedade civil com a gestão da EBC. "Precisamos deste diálogo direto, desta escuta ativa, caso contrário a TV pública não fará comunicação pública, fará comunicação para uma meia dúzia de pessoas que acreditam compreender os interesses do público e fomentam projetos que não incluem a Maioria Minorizada. Inclusão e participação é fortalecimento do processo de gestão e inserção da televisão pública no seio das demandas populares. Precisamos nos ver, não nos vendo não existimos. Acredito nestas transformações para fortalecimento da Empresa Pública de Comunicação desde este alvissareiro ano de 2023", afirma.
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